O novo inconsciente
Há mais de um significado para a
palavra "inconsciente", e a matéria da Super (Santi
& Lisboa, 2013) fez referência a dois deles. Um conceito mais genérico,
aceito por grande parte dos psicólogos, designa como "inconsciente"
qualquer processo psicológico a que o indivíduo não tem acesso ou que ocorre
sem que ele perceba. Enquanto estamos aprendendo a dirigir, por exemplo, ficamos
atentos a e seguimos cada instrução que nos é dada, e executamos cada movimento
com bastante cautela. À medida que as coisas vão dando certo, passamos a fazer
essas coisas sem muito planejamento, e aos poucos conseguimos ao mesmo tempo
alterar a frequência do rádio e conversar com o passageiro. Em outras palavras,
chega um momento em que naturalmente nos comportamos no "modo
automático", podendo nos empenhar em outras atividades enquanto
inconscientemente dirigimos, dançamos e digitamos.
O outro conceito abordado na matéria é
mais controverso. A existência do inconsciente, "entendido como um pedaço
da mente dotado de vontades que [escapam] ao controle consciente" (p. 40),
já era discutida desde o Iluminismo. Todavia, Sigmund Freud foi quem transformou
essa e outras ideias em uma teoria e num conjunto de técnicas: a psicanálise.
Como "uma prisão de segurança máxima" (Gay, 2012), no inconsciente
psicanalítico estariam trancados ou recalcados nossos traumas de infância. Esse
conteúdo traumático, que eventual e mascaradamente apareceria em lapsos,
brincadeiras e nos sonhos, seria a verdadeira raiz do sofrimento humano.
Hipótese profunda, não acham?
Ao longo da matéria, foram descritos
alguns estudos neurocientíficos que respaldariam a existência do(s) inconsciente(s).
Na verdade, o advento dessas pesquisas estaria dando uma nova cara a essa
entidade. O "novo inconsciente", como alguns neurocientistas o vêm
chamando, seria estudado por uma abordagem que "propõe uma explicação
puramente neurológica para o lado oculto da mente" (p. 40). No entanto,
explicar fenômenos psicológicos por processos neurológicos não é uma tarefa
simples. Vejamos as seguintes afirmações:
·
"Seu cérebro consciente não enxergava mais nada. Mas o inconsciente
dele ainda conseguia ver -- e, mais do que ver, julgar os
rostos das pessoas" (p. 38);
·
"[...] o seu inconsciente trabalha nos bastidores durante o
papo, vasculhando o seu vocabulário e abastecendo o consciente para ajudar você
a se expressar" (p. 39);
·
"[...] seu inconsciente se encarrega de transformar em ideias
os sons que estão saindo da boca dela" (p. 39);
·
"O cérebro é abastecido pelos olhos, ouvidos e outros
sentidos, e o inconsciente traduz tudo em imagens e palavras" (p. 39);
·
"O analista não conseguia perceber nada de diferente nas imagens,
mas o inconsciente dele, sim" (p. 45).
Em suma, afirma-se que o
inconsciente enxerga, julga, vasculha, traduz, percebe e traduzestímulos
em ideias, imagens e palavras. Mais que isso, propõe-se que o inconsciente
ocupa cerca de 95% do cérebro, o que quer dizer que 95% dos comportamentos
descritos acima são executados... bem, por uma espécie de "cérebro
inconsciente". Note que os processos neurais não estão explicando o
inconsciente: eles são o (novo) inconsciente.
Eu não vejo problema na ideia de que
muitos comportamentos de um indivíduo ocorrem sem sua percepção ou sem que ele
conheça suas causas. Entretanto, as coisas ficam estranhas quando termos
referentes ao comportamento do indivíduo são atribuídos
a uma parte desse indivíduo. A não ser que se dê significados
diferentes a esses termos, não faz sentido dizer que o cérebro ou o
inconsciente enxerga, julga, vasculha, percebe e traduz. Vou utilizar o caso da
"visão cega" para demonstrar esse problema lógico.
Embora indivíduos que apresentam "visão cega" (ou blindsight) sejam completamente cegos, eles podem curiosamente distinguir com certa eficácia faces amigáveis de faces hostis. Na matéria, diz-se que a percepção e o julgamento dessas faces são realizados pela área fusiforme -- uma parte do novo inconsciente --, e não pelo indivíduo. Mas quem de fato está percebendo e julgando -- ou quem está nomeando uma face como amigável ou hostil -- é o indivíduo, e não uma área de seu cérebro! Ninguém aceita a velha desculpa "Não fui eu, foi a minha mão", e ninguém diria "O motor do meu carro é muito veloz" em vez de "O meu carro é muito veloz". Cada uma dessas coisas pode estar envolvida ourelacionada ao julgamento, à agressão ou à velocidade, mas isso é diferente de dizer que a área fusiforme julga, a mão agride e o motor é veloz. Mesmo que consideremos 100% do bolo cerebral, nenhum termo psicológico é perfeitamente aplicável ou compreensível sem que se leve em conta a dimensão do indivíduo (suas ações, suas emoções e/ou seus pensamentos, por exemplo). Por isso, o comportamento dos neurocientistas (e não de seus cérebros!) de tomar a parte pelo todo é uma falácia -- especificamente, é a falácia mereológica da neurociência (Bennet & Hacker, 2003).
Embora indivíduos que apresentam "visão cega" (ou blindsight) sejam completamente cegos, eles podem curiosamente distinguir com certa eficácia faces amigáveis de faces hostis. Na matéria, diz-se que a percepção e o julgamento dessas faces são realizados pela área fusiforme -- uma parte do novo inconsciente --, e não pelo indivíduo. Mas quem de fato está percebendo e julgando -- ou quem está nomeando uma face como amigável ou hostil -- é o indivíduo, e não uma área de seu cérebro! Ninguém aceita a velha desculpa "Não fui eu, foi a minha mão", e ninguém diria "O motor do meu carro é muito veloz" em vez de "O meu carro é muito veloz". Cada uma dessas coisas pode estar envolvida ourelacionada ao julgamento, à agressão ou à velocidade, mas isso é diferente de dizer que a área fusiforme julga, a mão agride e o motor é veloz. Mesmo que consideremos 100% do bolo cerebral, nenhum termo psicológico é perfeitamente aplicável ou compreensível sem que se leve em conta a dimensão do indivíduo (suas ações, suas emoções e/ou seus pensamentos, por exemplo). Por isso, o comportamento dos neurocientistas (e não de seus cérebros!) de tomar a parte pelo todo é uma falácia -- especificamente, é a falácia mereológica da neurociência (Bennet & Hacker, 2003).
Postular o sujeito cerebral (ou o novo
inconsciente) suscita uma outra questão interessante. Logo na capa da revista,
afirma-se que o inconsciente "controla quase tudo o que você faz". Eu
não duvido que certos processos inconscientes estejam por trás do
comportamento, mas não parece ser uma boa estratégia tomá-los como o ponto de
partida de nossas explicações. Se admitirmos que o ambiente controla nosso
comportamento, somos contemplados pela possibilidade de o manipularmos.
Contudo, se formos simplesmente controlados por energias e mecanismos de uma
entidade oculta, o inconsciente, o que podemos fazer? Ora, os processos
inconscientes não podem ser autodeterminados, o que resulta em podermos
controlá-los -- e controlar o comportamento como um todo -- através da
manipulação de variáveis ambientais!(1) A propósito, é provável que
essas variáveis expliquem a maior parte dos -- senão todos os -- fenômenos
cujas causas Freud atribuíra ao inconsciente.
Mas eu não conheço a teoria freudiana o bastante para criticar sistematicamente suas teses. O que ficou claro para mim é que parte do subtítulo da matéria -- "As últimas descobertas da ciência [...] confirmam a principal teoria de Freud" -- foi bastante exagerada. Explico. Num estudo dirigido por ninguém menos que Eric Kandel, verificou-se que o núcleo basolateral da amígdala respondeu a faces de medo que piscavam rapidamente diante dos olhos dos participantes. Como eles não perceberam que os estímulos do experimento se tratavam de faces, concluiu-se que aquelas "imagens rápidas estimulavam diretamente o inconsciente (p. 42)" (ou emoções inconscientes), e que isso seria uma "comprovação neurocientífica de uma teoria central da psicanálise" (p. 42). A teoria diria que "a interpretação inconsciente de coisas negativas é a fonte de muitas aflições humanas" (p. 42), mas não ficou claro se os participantes realmente ficaram aflitos durante o experimento -- e ficar aflito significa bem mais que ter uma região do cérebro ativada. Mesmo que os participantes tenham alegado certo grau de aflição, a tese central de Freud certamente não diz respeito ao breve incômodo gerado por faces hostis! O apelo da matéria é tão ruim quanto sugerir que a história da Arca de Noé é verdadeira em função da constatação de que, em épocas remotas, certas costas continentais sofreram grandes alagamentos. Por isso, eu não vejo razão na conclusão de que o pai da psicanálise tinha razão.
O que conhecemos do inconsciente?
O inconsciente não é uma coisa, nem é
um lugar ou uma parte de alguma coisa. Coisificar o inconsciente não me parece
um bom começo para uma linha de pesquisa interessada em "comportamentos
inconscientes".
A crença no inconsciente parece ser
justificada pelo fato de que pouco sabemos sobre a causa de nossos
comportamentos. Por exemplo, ficamos surpresos quando trocamos o nome de quem
conhecemos bem e quando notamos que nossas reações são desproporcionais a algumas
situações. Tudo isso pode envolver certo aspecto de "inconsciência",
mas isso não implica que compreender esses comportamentos requeira explorar um
lado oculto da mente (seja lá o que isso for).
Há alguns meses, venho notando que a
maior parte dos lapsos verbais pode ser explicada por eventos que os antecedem
-- um fenômeno bem estudo e intitulado efeito de priming. Em
uma reunião em que estive presente, uma fonoaudióloga apresentou-se espontânea
e vergonhosamente como sendo nutricionista. A causa de seu comportamento não
estava nas entranhas de sua mente, e sim no comportamento de duas ou três de
suas colegasnutricionistas, que tinham acabado de se apresentar. Para os
que não notaram o que aconteceu antes do lapso da fonoaudióloga, seu
comportamento poderia erroneamente sugerir um desejo oculto de ser
nutricionista.(2)
Mas esses "desejos ocultos"
podem existir! Quando criança, eu me queixava eventualmente de dores e indisposições.
A maior parte desses sintomas era real, mas eu costumava exagerá-lá em tempo e
intensidade. Embora eu não percebesse na época, minhas queixas faziam com que
minha mãe ficasse por perto, dando-me mais atenção e carinho. Em outras
palavras, eu era inconsciente da -- ou eu desconhecia a
-- relação entre minhas queixas e os cuidados de minha mãe, e só recentemente
eu desocultei, por ter revelado a ela, meu desejo consciente de ser
um pouco mais bajulado.
Nesses casos, as causas do lapso e das
queixas exageradas eram inconscientes aos indivíduos (minha colega e eu,
respectivamente), uma vez que eles não conseguiam identificá-las. Mas, como eu
tentei demonstrar, o que havia para ser identificado ou conhecido não estava em
algum lugar secreto da mente, e sim dizia respeito a situações ambientais
indutoras (caso da fonoaudióloga) e/ou mantenedoras (meu caso) daqueles
comportamentos. Antes de os adquirirmos, onde é que estavam nossas habilidades
verbais e de direção? Não estavam em lugar algum, e o mesmo podemos dizer sobre
o autoconhecimento e sobre tudo quanto aprendemos. A propósito, a noção
difundida de que nossos conhecimentos e habilidades estão armazenados em
algum lugar (no cérebro ou na mente) é igualmente questionável.
Do homem das cavernas ao homem dos
jalecos, tendemos a inventar entidades, forças e mecanismos capazes de atribuir
sentido aos eventos cujas causas desconhecemos. Essas invenções podem ser
relativamente úteis nos estágios iniciais de uma investigação, mas é importante
que elas sejam suscetíveis à verificação empírica, ou poderão resultar em
dogmas. Minha honesta impressão é de que o inconsciente psicanalítico foi uma
tentativa de explicarmos, a respeito do comportamento humano, muito do que nos
era desconhecido. Eu sou razoavelmente adepto à noção mais genérica de
inconsciente, mas não vejo como sua versão psicanalítica pode, nos dias de
hoje, nos ajudar em alguma coisa. Espero que meus colegas freudianos e
lacanianos não interpretem minha postura cética como uma "resistência
inconsciente". Entretanto, desde que me apresentem razões irresistíveis
(lógicas e empíricas), mudarei de ideia sem sequer perceber.
Notas
(1) Para reflexões sobre a limitação de se explicar fenômenos comportamentais exclusivamente por variáveis internas (mentais e encefálicas), ver "O cérebro e o behaviorismo radical" (Gontijo, 2012).
(2) Esse fenômeno é facilmente reproduzível através de uma brincadeira bem conhecida. Peça que alguém diga "branco" rapidamente e por uns cinco segundos ("Branco, branco, branco, branco, branco, branco..."). Posteriormente, pergunte "O que a vaca bebe?". Boa parte das pessoas dirá leite, que é branco, e não água.
Referências
·
Bennett, M. R.,
& Hacker, P. M. S. (2003). Fundamentos Filosóficos da Neurociência. Lisboa: Instituto
Piaget.
·
Gay, P. (2012). Uma Vida para o Nosso Tempo. São Paulo:
Companhia das Letras. (Citado na matéria resenhada.)
·
Santi, A., & Lisboa, S. (2013). O mundo secreto do
INCONSCIENTE. Super Interessante, ed. 315. São Paulo: Editora
Abril.
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